'Cidade de Deus': 20 anos do melhor filme brasileiro de todos os tempos – 31/08/2022 – UOL Splash

“Dadinho é o car@lho, meu nome agora é Zé Pequeno, porr@!” Poucas vezes uma cena teve tanto impacto na história do cinema brasileiro como a transformação do criminoso vivido por Leandro Firmino em “Cidade de Deus”.

É nessa sequência que o diretor Fernando Meirelles resume o desespero e a intensidade da vida em uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. É o abraço a uma rotina de crimes e a constatação que naquele momento, naquele lugar e para aquelas pessoas, não havia outro curso de ação.

Quando “Cidade de Deus” chegou aos cinemas duas décadas atrás, vivíamos em outro Brasil. Pela primeira vez desde sempre, havia a possibilidade de ascensão econômica e social. O país estava no holofote do mundo, o futuro parecia cheio de esperança e o cravaria seu lugar como o recorte de parte da história recente, que seria vista somente pelo retrovisor.

Colunistas do UOL

Adaptado do livro publicado por Paulo Lins em 1997, “Cidade de Deus” acompanha o jovem Buscapé (Alexandre Rodrigues), morador de uma das maiores favelas cariocas. Se o crime surgia como possibilidade de projeção financeira e social em um lugar esquecido pelo poder público, ele enxerga a possibilidade de quebrar o ciclo ao trabalhar como fotógrafo.

É ele quem narra a trajetória da comunidade, a partir de sua criação, ainda nos anos 1960, como um projeto habitacional para os menos favorecidos. Em suas ruelas, o Trio Ternura fazia a fama como criminosos que roubavam de empresários e dividiam a renda com o povo.

Essa romantização se estilhaça na década seguinte, quando Dadinho, agora Zé Pequeno, um sociopata que sente prazer em matar, ascende ao posto de comandante do tráfico. Uma guerra de gangues irrompe na Cidade de Deus e, nos anos seguintes, fortalecem o narcotráfico que altera irrevogavelmente a vida de seus protagonistas e mancha a paisagem do Rio de Janeiro.

Alexandre Rodrigues como Buscapé em 'Cidade de Deus' Imagem: Imagem

“Cidade de Deus” se tornou febre quando chegou aos cinemas. Não por “romantizar o crime e a favela”, como alguns acusaram. E sim por ser um filme como nenhum outro já feito no Brasil. Uma história que só poderia acontecer aqui, arquitetada com profissionalismo e executada como, de fato, cinema. Um naco de cultura pop pintado de verde, amarelo e sangue.

A produção de cinema no Brasil sempre viveu em bolhas, com momentos de respiro seguidos por longos períodos de indefinição econômica. A sombra do Cinema Novo, ao mesmo tempo que conferiu personalidade à nossa produção, inadvertidamente se impôs como uma muleta, como única alternativa artística e estética.

O plano Collor terminou por sepultar a produção nacional no início dos anos 1990, eliminando os respiros, as ideias e a indústria. Quando Carla Camurati lançou “Carlota Joaquina” em 1995, um ano depois da implementação do plano Real e a estabilização da moeda nacional com o recuo da inflação, o cinema aos poucos voltou a respirar.

Mesmo com a produção esquentando, nenhum outro filme chegou perto do salto empreendido por “Cidade de Deus”. Havia, sim, a narrativa que mais uma vez voltava seu olhar para o abismo social enfrentado pelo país. Existia também a ficcionalização de uma tragédia urbana bem real.

Mas tudo foi feito não como uma tese, com academicismos arcaicos. “Cidade de Deus” surgiu como obra vibrante, sem em nenhum segundo desviar-se de sua vocação como cinema pop. Não somente “popular”, mas também alinhado com o zeitgeist, um fragmento único de um momento especial.

O mundo logo se rendeu à força esmagadora do filme de Meirelles. Após ser exibido fora de competição em Cannes em 2002, “Cidade de Deus” passou a conquistar os apaixonados por cinema, independente de sua bandeira. Além de render mais de US 30 milhões nas telas internacionais, a obra terminou em diversas listas de melhores do ano.

Em 2004, “Cidade de Deus” foi reconhecido com quatro indicações ao Oscar: melhor direção (para Meirelles), roteiro adaptado (texto de Bráulio Mantovani), fotografia (de César Charlone) e montagem (assinada por Daniel Rezende). Seu Jorge e Alice Braga, coadjuvantes na trama, saíram do filme para conquistar reconhecimento global.

Leandro Firmino como Zé Pequeno em 'Cidade de Deus' Imagem: Imagem

Duas décadas depois de seu lançamento, “Cidade de Deus” ainda impressiona como uma obra de narrativa poderosa, executada como cinema de indiscutível beleza. O país, entretanto, não foi firme à promessa de acompanhar o momento de júbilo proporcionado pelo filme.

O microcosmo no qual ele brotou traz as perguntas e também as respostas para o teatro de bonecos em que vivemos sem enxergar os fios. O melhor exemplo é o elenco, pincelado entre as favelas e comunidades cariocas e lapidado em oficinas de atuação.

O que parecia um alento em meio à realidade dos morros e comunidades bateu de frente com o mundo real: poucos atores formados em “Cidade de Deus” seguem hoje na profissão. Conversei com alguns deles ano passado, ao lado de Fernando Meireles, em uma edição do programa “!” aqui do UOL – que você pode assistir ali em cima!

Alice Braga na imagem que rodou o mundo no poster de 'Cidade de Deus' Imagem: Imagem

A realidade tratou de reconfigurar cada elemento da equação de esperança sugerida em 2002. A pobreza no país revelou mais uma vez suas garras nefastas. A desigualdade social segue flertando com o abismo. O país voltou para o mapa da fome! “Cidade de Deus” foi criado como um alerta. Agora segue, implacável, como um espelho.

A arte, entretanto, nunca perde seu poder transformador. Nesse momento, em que o Brasil pode mais uma vez reescrever sua história e se afastar da retórica do ódio que parece infestar a sociedade, “Cidade de Deus” é um exemplo de nosso melhor. É a prova que a cultura transforma vidas e reacende a esperança.

Acima de tudo, o filme continua como o momento mais brilhante e digno de orgulho da produção cinematográfica brasileira. É uma obra-prima que representa o instante raro em que cada elemento – social, financeiro, artístico – se alinhou para gerar uma obra irretocável. “Cidade de Deus”, vinte anos depois, é o filme que ainda nos permite sonhar.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *